A vela que virou canela
As lendas têm o poder de se misturar com a história, chegando a um ponto em que não é possível diferenciar o que aconteceu e o que foi inventado. Esse é um desses relatos que há muito perdeu seus registros, mas que tampouco é esquecido pela sociedade francisquense.
O terreno que hoje é a Igreja Matriz Nossa Senhora da Graça já abrigou um dos maiores cemitérios de escravizados da região. Uma descendente desses homens e mulheres, que um dia morreram privados de seus direitos, começou a notar uma movimentação estranha ao anoitecer das sextas-feiras.
A princípio, ela achou que estivesse sonhando, delirando ou alucinando, mas nada a preparou para o que seus olhos presenciaram na noite de Sexta-feira Santa. Na saída da igreja, próximo à sacristia, uma multidão se formou. Diversos escravizados caminhavam ao redor do prédio em procissão enquanto eram guiados por padres que já pertenceram à paróquia e seguravam velas acesas para iluminar o caminho.
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A jovem assustada com o tanto de gente à sua frente, levou a mão aos olhos, em uma tentativa de dissipar seja qual for a pegadinha que sua mente cansada estava lhe pregando. Esfregou uma, duas, três vezes, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, parecia que mais gente tinha se juntado à procissão.
Encantada com a situação que transcorria diante de si, ela se deu por vencida e começou a admirar a passeata. A menina estava intrigada em como aquela multidão não fazia barulho. A indagação logo foi substituída pelo pavor. Se forçasse bem os olhos, conseguiria ver através dos corpos monótonos. Ela acompanhava uma procissão de almas penadas. Almas aquelas que pertenciam aos enterrados debaixo da estrutura santificada.
Nem por um segundo sua atenção foi desviada e, assim, acompanhou até o último fantasma desaparecer pela porta lateral da igreja. Nas sextas-feiras seguintes, a menina estava esperando ansiosa para mais um fenômeno sobrenatural acontecer diante dos seus olhos.
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Certo dia, uma dessas almas se aproximou da janela em que a menina observava. Mesmo com medo, ela não se intimidou e estendeu a mão para receber a vela que o espectro lhe oferecia. Com o faixo de luz, uma missão lhe foi designada. A pedido da assombração, ela prometeu manter a chama acesa até a procissão encerrar e guardar a vela em um canto da sala.
A jovem não ousou contrariar o fantasma e seguiu o combinado. Seus olhos revezavam em acompanhar a peregrinação das almas e o dançar da chama que iluminava a pequena sala. Depois que o último espírito escravizado desapareceu, ela foi dormir.
Na manhã seguinte, ela foi correndo em direção à sala para comprovar que os acontecimentos noturnos não teriam sido frutos da sua imaginação. Quando chegou ao canto em que deixou a vela, a surpresa ficou estampada em seu rosto e o choque paralisou seus movimentos. A vela não estava em lugar nenhum, mas se engana quem pensa que não havia nada por lá. Uma espécie de cabo comprido e opaco apareceu ali. A mente da jovem gritava para ela se afastar, mas ela não conseguia desviar o olhar. A vela que ali estava agora dava lugar à canela daquele escravizado, que um dia vagou pelos mesmos caminhos que percorria incansavelmente à noite.