As pinceladas que abrem a porta da Casa Pezzini
O cruzamento do largo Almirante Morães Rêgo com a rua Marechal Floriano foge do padrão imponente ao se apresentar singelo e despretensiosamente com o seu conjunto de casas baixas, com uma porta e duas janelas. Entre as construções está a de número 250.
Atrás da porta de madeira e das grossas paredes - traços da época de edificação -, os quadros pendurados ganham completamente a visão de qualquer um que resolva entrar na casa. Quem consegue desviar o olhar por poucos segundos das obras percebe que os atuais donos tentaram conservar e buscar elementos que complementam a passagem de tempo do local.
Partindo de conhecimentos técnicos arquitetônicos, estima-se que a casa tenha mais de 270 anos. Seu exterior traz atributos identificados na arquitetura clássica colonial portuguesa do final do século XVIII. Ainda é possível estipular que, por conta dessas características, essa construção tenha sido uma das primeiras do seu entorno.
Apesar da vizinhança singela, muito se engana quem acredita que essa casa tenha sido habitada por pessoas humildes. Apesar dos registros de seus antigos moradores terem se perdido no tempo e de não possuir uma alta e rebuscada estrutura, a partir dos elementos arquitetônicos é possível ter uma ideia de quanto dinheiro a família da época tinha. Logo na fachada a eira e a beira chamam atenção. Esses elementos estão presentes logo abaixo do telhado e quanto mais largos fossem, mais dinheiro os moradores tinham. Outro item da lista presente, e que também era um sinônimo de conforto, era ter um poço no terreno, já que evitava o deslocamento às fontes e bicas da cidade.
As paredes grossas são frutos dos blocos de pedra ligados por argamassa de areia e conchas. Outro elemento visível na sua estrutura são as vigas que sustentam o telhado. O estilo colonial português possui traços únicos de design. A porta central dá acesso a um corredor que liga todos os cômodos da casa. São duas salas, uma para cada janela, um banheiro no corredor e nos fundos a cozinha e a sala de jantar.
A porta e as janelas costumam ficar abertas, como se fossem um convite para seguir pelo corredor. Assim que os pés são colocados dentro da casa, a sensação é de ser transportado para um museu. Mal dá para ver espaços em branco nas paredes. Elas são revestidas do teto ao chão com os mais variados quadros, de diversos tamanhos, cores, épocas e nacionalidades. A casa respira arte e até o banheiro não fica de fora dessa, só que dá pra dizer que essas peças são um pouquinho mais especiais, visto que no banheiro ficam alguns desenhos dos filhos dos atuais proprietários.
Ao final do corredor, é apresentado o quintal e uma pequena edícula. A vegetação rasteira é protegida por um robusto muro com as pedras originais da casa evidentes. Uma espécie de poço é protegida pelas mesmas pedras e um portãozinho de ferro. Um caminho de tijolinhos, como se tivessem saído do “Mágico de Oz”, levam até a escada de acesso ao outro compartimento do terreno. O lugar pequeno, mas aconchegante, é usado como escritório e também não escapa dos quadros.
Quem habita esse museu em forma de lar é o casal Marina e Velci Pezzini. Eles estão casados há 40 anos, mas adquiriram a casa só em 2007. Ela é natural da cidade e ele, itajaiense. Sua história de amor iniciou em 1982, quando Velci foi a São Chico construir um estaleiro onde hoje é o Hotel Vila Real, no bairro do Paulas. Caminhando pela cidade, esbarrou em Marina e, ali, iniciaria uma nova história de amor, que logo se tornaria casamento. Foram morar no Rio Grande do Sul, por causa do trabalho de Velci, mas sempre vinham visitar a família dela. Contudo, a estrada foi cansando e o desejo de voltar à tão amada cidade falou mais alto.
Marina sempre quis uma casa no centro histórico. Seu marido fala com carinho que a compra da número 250 é a realização do sonho e esforço da amada. Apesar da aquisição do imóvel, eles foram para Itajaí e abriram uma marmoraria no bairro Cordeiros. A vontade de viver em meio às antigas construções ainda tinha que esperar, pois o local precisava urgentemente de uma reforma e eles descobriram isso da pior maneira possível.
Aconchegado no sofá preto de couro, com as pernas cruzadas e uma taça de vinho tinto na mão, Velci viaja para a primeira noite sobre as vigas proeminentes de madeira. Eles tinham acabado de fechar negócio e, assim que botaram a mão na chave, decidiram pernoitar no local. Seus filhos eram pequenos na época e ficaram na casa da avó materna. O casal não levou nada além das roupas do corpo e um colchão, já que não tinha nada no imóvel, nem uma estrutura forte o suficiente para impedir o surgimento de goteiras. Bem nessa noite, a parte histórica de São Chico ficou embaixo d’água. Haviam apenas uns quatro ou cinco pontos que permitiam escapar dos pingos da chuva. No dia seguinte, eles trataram de bater no Iphan para abrir o processo de restauro.
Foi quase um ano e meio fazendo obras. Como a estrutura é antiga, ela precisava de maiores cuidados e atenção. Olhando de fora, a casa parece pequena, mas ela tem um pé direito alto o suficiente para garantir que um mezanino para o quarto do casal fosse feito. Os detalhes foram calculados para que o interior da construção correspondesse com o seu exterior. Maçanetas antigas foram colocadas, lustres rebuscados pendurados e algumas paredes descascadas para que o seu material fosse revelado e completasse a estética do local. O ambiente estava concluído, mas não parecia completo. Ainda tinha o aspecto cru, como se faltasse algo.
Mesmo antes de ficarem juntos, o casal tinha um gosto em comum e que só os fez se aproximar mais: a arte. Eles eram colecionadores de quadros, desenhos e esculturas. Quando decidiram compartilhar a vida, levaram consigo as pinturas há muito adquiridas. Não demorou muito para que as paredes, antes nuas, ficassem completamente vestidas de obras artísticas. O casal perdeu a conta de quantas estão penduradas nas paredes, mas acreditam que devem estar perto de 250.
"Nós temos obras empacotadas, temos obras guardadas, porque não tem mais espaço para colocar. Tudo o que tem aqui, em termos de obra, é processo de quase 40 anos de casamento e de antes ainda. A Marina coleciona quadros desde que era solteira. Então, aqui temos obras que ela comprava já naquela época" - Velci Pezzini
Não basta só colecionar, eles também botam a mão na massa e expõem suas próprias criações. Além de pintores, viraram experts em pendurar os quadros, que não é tarefa fácil, já que não são paredes comuns. Na hora de colocar cada uma em seu lugar, não ligam pra ordem.
Os quadros não foram postos pensando de um modo muito matemático, é uma coisa mais filosófica. Eu e a Marina temos uma diferença muito básica. A Marina tem uma sintonia fina com os pequenos detalhes. Eu já tenho mais noção do espaço, eu sou mais da amplitude, então consigo determinar os espaços que são viáveis. A Marina vai na sintonia fina. Onde ela bota a mão fica bonito. Encaixa perfeitamente
Com a marmoraria em Itajaí, eles compraram uma casa em Penha, onde residem atualmente. A casa de São Chico é aberta aos finais de semana. Apesar de não ser a residência principal, a Casa Pezzini é a que eles chamam de lar.
O local ganha a atenção de quem passa pela rua. As janelas e portas abertas te apresentam a uma vastidão cultural. Velcio perdeu as contas de quantas pessoas entram acreditando ser um museu e ele não vê problema em deixá-las explorar o local, pelo contrário, fica feliz quando acontece. Eles têm orgulho do acervo que possuem, tanto que até perdem horas admirando seu pequeno santuário.
Às vezes, eu venho na sala de madrugada, fumo um charuto e fico olhando para os quadros. Como eu não vivo aqui, não estou todo dia, fico olhando cada um que está pendurado. A Marina também viaja muito enquanto observa as obras. De tanto admirar, encontro pinturas que nem lembrava que tinha
O acervo é enorme. Tem obras bem antigas, novas, clássicas e contemporâneas. Elas foram compradas em viagens, leilões, galerias, encomendadas, ganhas e criadas por eles. Cada uma é importante.
“Tudo aqui tem um significado muito grande”
Apesar dos poucos registros históricos de seus primeiros moradores, a casa permanece de pé servindo de cenário para novas memórias. Sua localização é rica em lembranças e a vizinhança conserva boa parte do passado da sociedade francisquense. As pinturas que rodeiam as paredes da Casa Pezzini retratam o pretérito, são admiradas pelo presente e acompanham o desenvolvimento do futuro.