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A tradição que abre a porta do Casarão Assef

Quem observa o entra e sai constante do casarão amarelinho da rua General Osório acredita que essa deve ser uma constante de muitos anos e de certa forma não está enganado. O número 110 sempre foi um ponto de referência do comércio local. Entretanto, o que muitos não sabem, não lembram ou não dão o devido valor, é que ali viveu uma das maiores poetisas da região.

Júlia da Costa foi uma das célebres escritoras do século XIX. Apesar de ter nascido em Paranaguá, no litoral paranaense, veio pequena para São Francisco do Sul e foi aqui que sua paixão pela escrita iniciou. Com o auxílio do Padre Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva, ela publicou um livro de poesia dividido em duas edições. O “Flores Dispersas” veio ao mundo pela primeira vez em 1867, na capital catarinense quando ainda era conhecida por Desterro, e o volume dois no ano seguinte.

“Outrora, outrora eu amava a vida

Meiga, florida na estação das flores!

Amava o mundo e trajava as galas

Dos matutinos, virginais amores.

(...)

Hoje debalde no rumor das festas

Procuro crenças que só tive um dia!

Minha alma chora e se retrai sozinha,

O pó das lousas a fitar sombria! ” - Queixas

Com seus escritos fora do padrão feminino da época, Júlia abordava temas como solidão, perda, angústia e dor de viver. Em muitos poemas é possível ver o desejo da morte por trás das palavras rebuscadas. De acordo com os rumores que rondam o mundo dos poetisas, os escritos de Júlia passaram a ter esse toque melodramático após o breve romance com outro poeta, Benjamin Carvalho de Oliveira, o Carvoliva. A história de amor estava fadada ao fracasso e Gomes buscou a escrita como válvula de escape.

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Em 1871, aos 27 anos, ela se mudou para o casarão na esquina do centro da cidade. Júlia se casou com o Comendador Costa Pereira, dono de uma das mais importantes lojas de secos e molhados, tecidos, ferragens, louça e armarinhos da localidade, que funcionava desde 1843. Mesmo com um casamento de fachada, o sobrado virou ponto de referência da alta sociedade francisquense. Ali, figuras importantes se reuniam para bailes, saraus e jantares. Além de hospedar personalidades de destaque de todo o país.


Mesmo sem amor, a poetisa sentiu profundamente a morte do companheiro. Costa Pereira faleceu em 1892 e deixou uma loja, uma casa e uma jovem solitária. Viúva, Júlia sucumbiu a angústia e abraçou a desesperança. Deste modo, aguardou ansiosamente o fim que a levaria reclusa no lugar que aprendeu a chamar de lar. Ela morreu em 1911 já desnorteada e apresentando sintomas de demência.

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Logo após sua partida, o imóvel foi comprado pelo imigrante libanês João Nicolau Assef e assim começou a história da família na cidade. Imediatamente, reformas foram feitas, mas o princípio permaneceu o mesmo. O andar superior foi destinado para instalar a família e o patamar inferior deu continuidade a casa comercial, com os mesmos produtos à venda. 

Nicolau veio para a cidade pela primeira vez sozinho, mas logo retornou ao seu país de origem. Lá iniciou sua história de amor e se casou. Com os seis filhos frutos da união, o casal se mudou de vez para as terras francisquenses e se estabeleceu no sobrado amarelo. 

Na época, a loja tinha foco principal em tecidos, chapéus e alguma coisa em calçado. Era muito difícil ver algum comércio ofertando roupas prontas, era comum comprar tecidos para que os vestuários fossem feitos sob medida. Nos trajes masculinos do início do século XX, o chapéu era item obrigatório e, consequentemente, todo lugar tinha um móvel para guardar o acessório. 

“A loja passou do meu bisavô pro meu vô. Do vô pro meu pai e depois do pai pra mim. Então, essa é a história da loja, sempre no mesmo endereço. O casarão já está na família há mais de 100 anos” - Ricardo Assef

Com o falecimento do patriarca dos Assef, o único filho homem, Felipe, foi nomeado como responsável pela continuidade do negócio e que depois passou para o seu filho Joel. A passagem de bastão deste último não foi simples. GG, como era conhecido Joel, começou a comprar partes do prédio que eram dos seus irmãos, até que conseguiu unificar todos os pedaços, a última parte foi comprada em 1975. Com o acordo fechado, Joel e sua esposa, Delourdes, se mudaram para o sobrado 110. Com o falecimento do, até então, chefe da família, o prédio passou para os cuidados de Ricardo. Atualmente, é ele que toca o comércio, a tradicional loja “GG Calçados”, e sua mãe continua residindo no andar superior. 

Eu sempre brigo pelo Centro. Tudo o que eu tenho tá aqui. Eu nasci aqui em cima, trabalho aqui e moro ali do lado. Então, eu brigo pela valorização do lugar em que vivo.

Quando chegou na casa, há 50 anos, dona Delourdes se deparou um imóvel um tanto diferente do que depois começaria a chamar de lar. Como o sobrado era dividido para todos os filhos, os cômodos eram interligados com 12 portas de vidro cobertas por cortinas. Após comprarem todos os compartimentos, o casal iniciou uma reforma geral. As portas deram espaço a um corredor, a cozinha virou uma laje e foram acrescentados uma lavanderia e churrasqueira ao prédio.


O carrinho pela construção número 110 fica evidente nas falas da matriarca. Foi em meio aquelas paredes que ela vivenciou 50 anos ao lado do amor da sua vida. Foram naqueles cômodos que ela deu à luz aos seus filhos. Foi ali que ela aprendeu a comandar uma família e acompanhou o desenvolvimento de seus descendentes.

“Ah a casa, eu adoro aqui. Só vou sair quando morrer. Não tenho pretensão nenhuma de sair daqui e morar em qualquer outro lugar. Aqui eu me distraio, observo o movimento da cidade e admiro o horizonte da janela ” - Dona Delourdes

Da mesma janela que um dia serviu de inspiração para os poemas de Júlia da Costa, dona Delourdes passa horas admirando a vida acontecendo do lado de fora. Sua casa fica localizada num dos pontos mais privilegiados do centro histórico. Da varanda, ela consegue ter uma visão completa da Babitonga.


Para ela, é reconfortante ouvir o movimento, perceber que o mundo lá fora não parou, que o agito percorre o centro da cidade. Mesmo que o barulho se estenda pela madrugada, ela não se importa. Gosta de acompanhar a alegria pulsando pelas ruas de São Chico. 


O gosto pelo agito veio desde de nova. O carnaval na cidade era uma das datas preferidas pela população. Os dias de festa bombavam os principais clubes. Os bailes se estendiam durante a noite e terminaram só na manhã seguinte, quando a folia dominava as ruas.

Todo mundo era sócio dos dois clubes. Quando tinha festa em um, não tinha no outro. Por exemplo, sábado era dia de baile no Cruzeiro e domingo a festa ia pro XXIV de novembro. Quando acabava a folia em um, a banda tomava a avenida e conduzia o povo pro outro clube, era uma forma de convite para o baile do dia seguinte.

Ela se lembra nostálgica das comemorações que tomavam conta do centro da cidade. Além do carnaval, a festa junina também era muito forte e todos iam a caráter. Também tinha os bailes dos clubes com as cores. No Cruzeiro, era o tradicional baile Azul e Branco e só entrava quem estava vestindo essas tonalidades. Assim como no XXIV de novembro tinha o baile Vermelho e Branco. A população francisquense de antigamente adorava comemorar e dançar até da noite, dona Delourdes sente falta deste calendário festivo da cidade.

Acho que aproveitei mais a minha juventude e mocidade, mesmo depois de casada, do que os meus filhos, sabia?

A saudade na voz também fica evidente quando se lembra de seu marido. Joel faleceu em 2021 e sua falta é sentida todos os dias por aquela que jurou amar até o fim. Ele adorava o avô, o velho Nicolau, mas conviveu pouco. Dizia que ele era um homem forte e com muitos cabelos, enquanto o próprio Joel tinha poucos. Na infância, já demonstrava amor e interesse pelos negócios da família, se juntava com o avô no caixa e ficava contando as moedas. Gosto esse que passou para o seu filho Ricardo. 

“Eu lembro na época de Natal que tinha muito movimento, hoje as pessoas compram em qualquer data, mas naquela época só compravam quando era Natal ou aniversário. Eu lembro que tinha uma espécie de armário que ficavam as caixas de sapato que os clientes não levavam e eu ficava pisando nelas. Era a minha diversão. No final, me chamavam para ajudar a contar o dinheiro e eu adorava” - Ricardo Assef

A loja faz tão parte da família quanto a casa. Foi ali que os Assef cresceram e criaram seus herdeiros. A casa que presenciou nascimentos, histórias de amor e despedidas. Ela que acompanha o entra e sai constante de clientes, mas que também se aconchega na calada da noite observando a Babitonga. O sobrado que um dia pertenceu à melancolia Júlia da Costa, hoje presencia a alegria e vontade de viver dos Assef.

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