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Os encontros marcados na porta do Casarão Calixto

O centro histórico de São Chico é o berço das construções e da paisagem arquitetônica mais marcante da cidade. Entretanto, toda regra existe uma exceção e o Casarão Calixto, também conhecido como Solar dos Pereiras, é uma. O imóvel foi erguido em 1810 na rua Doutor Francisco Mascarenhas, e é uma das primeiras construções do bairro do Paulas.

O casarão açoriano é um dos únicos ainda restantes na região. Por mais de dois séculos foi conhecido como “a casa de pedra”, construído por Joaquim Pereira da Costa Lima e depois adquirido por Miguel de Miranda Coutinho. Apesar dos nomes de seus proprietários, fica perdido na história os acontecimentos que marcaram o imóvel durante o período.

A construção passou pelas mãos do Padre Antônio Francisco de Nóbrega em 1873 e assim permaneceu por 70 anos. O sacerdote assumiu como vigário da Igreja Matriz e era muito querido na cidade. Por isso, a instalação por muito tempo foi o refúgio de viajantes e ponto de encontro da localidade. 

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A edificação tem aproximadamente 300 metros quadrados de área construída e algumas partes, principalmente a fachada, conservam a sua estrutura original. As paredes grossas e sobreviventes do ciclo temporal foram feitas de estuque - uma mistura de cipó, barro e ripas de palmeira -, além de uma grande quantidade de pedras. 

A grande casa possui inúmeras janelas e, na mesma proporção, era formada por muitos cômodos. Como sua estrutura era grande para os padrões da época, é de se imaginar que os primeiros moradores possuíam riquezas, terras e eram senhores de escravos. O local era uma fazenda e até algum tempo atrás era possível encontrar as ruínas de uma senzala, uma represa de captação de água, duas colunas construídas de pedra, argamassa e óleo de baleia, que serviam como apoio à roda de água que movimentava o engenho. 

A família Pereira chegou às instalações em 1945, quando Calixto e Maria Faria de Lima - popularmente chamada de Maroca - adquiriram a residência. Como a estrutura era imensa, ela foi dividida em três partes: casa, comércio local de secos e molhados e a primeira escola do bairro. 

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O casarão era o ponto de encontro da comunidade, como estavam distantes do centro, encontraram naquela estrutura um lugar de refúgio e acolhimento. Era para lá que as pessoas corriam para aprender a ler, costurar e pintar. Ali que a comunidade comprava os mantimentos e até se alimentava. Era para os cuidados de dona Maroca que adultos recorriam quando seus filhos nasciam ou adoeciam. O imóvel era muito mais que uma residência, ele era a vida e o ponto de referência do bairro. 

Para Rosa Dulcelina Lima de Aviz, ou simplesmente Dona Rosinha, o casarão foi o local que ela chamou de lar. Ali foi onde ela cresceu, criou laços e construiu memórias. A filha do casal Calixto e Maroca acompanhou de perto a rotina na qual seus pais estavam inseridos. 

Com o carinho marcando a voz, dona Rosinha viaja no tempo e resgata a lembrança dos dias em que a comunidade se dirigia ao casarão para a venda, escola ou nos fundos da casa, onde tinha uma fonte na qual as lavadeiras lavavam as roupas de quem desembarcava dos navios ali no balneário. Ela acompanhava as mulheres até o ribeirão e as observava com uma tábua e de joelhos entoar cânticos enquanto limpavam os vestuários e colocavam ervas para dar um aroma diferenciado. 

Além da fonte, ela facilmente era encontrada do lado de Maroca ajudando na venda. Rosinha e seus irmãos foram ensinados a interagir e contribuir nas atividades de funcionamento do casarão. Enquanto sua mãe cuidava do comércio, Calixto era responsável pelo pasto. Galopando em seu cavalo, ele pastoreava os outros animais da fazenda e cortava lenha. 

O casarão nunca ficava vazio. Era um entra e sai de clientes, estudantes, amigos e visitantes em qualquer momento do dia, incluindo no domingo, que era um dos dias mais movimentados da casa. Pode-se dizer que este era um dos dias mais aguardados por Rosinha e seus irmãos. A vizinhança aparecia em peso para curtir durante a tarde a domingueira. O povo se reunia para comer e dançar ao som de instrumentos tocados pela própria comunidade.

"Passei a minha infância e juventude na casa. Morei lá até me casar e mesmo assim continuava voltando toda semana. Meus filhos, Maria Cristina, Júnior, Antônio Roberto e Fernando, adoravam passar a semana lá, adoravam tomar banho na praia e se divertir” - Dona Rosinha.

Aos 93 anos, a filha de Maroca e Calixto guarda memórias felizes do local que por muitos anos chamou de lar. Quando ficou sabendo que suas netas iriam reformar a casa que, nos últimos anos, foi tomada pelo mato e vítima das condições climáticas, ela imediatamente apoiou e descreveu em uma palavra qual foi o sentimento de retornar à casa depois de tanto tempo: Feliz.

Diferente de sua filha Maria Cristina de Aviz, que foi a única pessoa que se opôs à reforma. Não porque não acreditava no potencial das suas filhas Helena e Mariana, mas porque não via um espaço comercial viável no local. Contudo, essa ideia mudou, principalmente quando botou os pés no imóvel pela primeira vez após as obras.

“Entrar no casarão resgatou meus sentimentos infantis.  Cada vez que eu entro, eu revivo a minha infância, aquela infância pura e tranquila. Era uma infância saudável e principalmente de muito amor” - Maria Cristina de Aviz

A neta de Calixto e Maroca ressalta que seus tempos de menina, rodeada pelas paredes do casarão, foram muito felizes. Uma lembrança que está viva na sua mente é quando ia à praia todos os dias catar berbigão e acompanhava de camarote sua avó cozinhando o alimento.


Maria Cristina nasceu prematura e com pequenos problemas de saúde, por este motivo precisa de muita atenção. Na época, dona Rosinha trabalhava e fazia faculdade, ou seja, não conseguia passar tanto tempo quanto gostaria com a filha. Por este motivo, ela foi criada no casarão com seus avós. 

Foi uma época maravilhosa. Passei a minha primeira infância toda lá no Paulas, no casarão. Ficava grudada na vó Maroca e todos os dias o vô Calixto me levava para tomar banho de mar. Segundo ele, pegar o quebrante - onde as ondas formadas pela entrada dos navios no porto quebravam - aumentava a imunidade, uma crença bem popular da época

Outra memória guardada com carinho era a forma de como era acordada diariamente por Maroca. Sua avó fazia uma gemada de outro mundo. Ela conseguia transformar, numa caneca, o ovo, açúcar e algumas gotas de suco de limão em um sabor sensacional no qual transbordava amor. 


Falando em comida, esse era um tópico que não faltava no imóvel. A mesa das refeições sempre estava repleta dos mais variados e deliciosos quitutes. Maria recorda o cardápio regular das maravilhas feitas pela avó, durante a manhã era servido banana frita com farofa e a tarde o bolinho de chuva ou sonho ganhava protagonismo. A mesa cheia atraia a vizinhança, que era convidada a se juntar ao banquete. 


Não eram apenas em momentos de comemorações que o local ganhava a presença da comunidade. Uma das lembranças mais nítidas que Maria tem é de quando sua avó recebia bebês e crianças para uma consulta de rotina. Além de administrar a venda de secos e molhados da família e ser uma cozinheira de mão cheia, a proprietária do imóvel cuidava da saúde dos moradores da proximidade. A pequena Maria Cristina acompanhava de pertinho quando a vó Maroca pegava uma balança dos armários e pesava o público infantil.  Se por algum motivo os olhos atentos da neta não estavam nas proximidades, a menina era chamada para acompanhar o processo.

Ela [dona Maroca] sabia que eu queria vê-la pesar as crianças. Após ela fazer isso, anotava numa caderneta, que toda mãe levava, as medidas e assim fazia o acompanhamento mensal do aumento de peso e altura das crianças. Ela chamava atenção sobre algumas coisas, eu lembro que ela elogiava outras era muito bonita essa relação da avó com a comunidade

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Rosalba, dona Maroca, Maria Cristina e dona Rosinha (Foto: Arquivo pessoal)

Dona Maroca era a solução de muitas mães e pais desesperados da comunidade com alguma enfermidade dos filhos. Ela benzia, fazia parto, cuidava e orientava a vizinhança da melhor forma e todos que a procuravam enxergavam ela uma liderança da localidade. A relação entre a proprietária do casarão com a população local sempre foi algo que Maria admirou. 


Ela lembra que quando alguém tinha dificuldade, sempre batia na porta da residência e era recebido com o maior carinho e acolhimento. A rotina na casa começava bem cedinho, dona Maroca ia à praia receber as canoas e ver o que os comerciantes traziam de novidade. Depois, era a vez do padeiro entregar o pão e deixar a mesa posta para atender a movimentação que logo se formaria. 

O Casarão para mim é a materialização da afetividade. Foi ali que eu era tão bem cuidada. Não só eu como meus irmãos e os meus primos. Maroca era aquela pessoa que cuidava de todo mundo. Ela dedicou a vida as outras pessoas

Toda essa atmosfera de carinho e boas memórias guiou as bisnetas de Calixto e Maroca para que a estrutura do casarão fosse reformada. Quando o casal faleceu, a casa ficou sob os cuidados de uma das filhas, a dona Rosalba. Ela manteve a tradição da família, recebia todos que precisavam de ajuda e ensinava a pintar e bordar. O local continuava sendo ponto de referência por muitos anos. 

Devido a sua estrutura açoriana, seu grande espaço de terreno e a proximidade com o mar, o Solar dos Pereiras foi cenário do filme “Anita e Garibaldi" em 2005. A produção nacional contou com nomes de Ana Paula Arósio e Gabriel Braga Nunes, mas com pouco orçamento, o longa-metragem só foi lançado em 2012. Várias pessoas da cidade trabalharam como figurantes e Rosalba coordenou a produção dentro da residência da família.

As irmãs Mariana e Helena Aviz da Costa Pereira não chegaram a conviver tanto na casa quanto sua mãe - Maria - ou sua avó - dona Rosinha -, mas foram rodeadas de histórias e memórias da família. Mariana é a mais velha das duas e tem uma vaga lembrança da bisavó Maroca. Mesmo não convivendo com seus antepassados, as duas cultivam memórias do tempo em que visitavam a tia Rosalba. Naturais de Florianópolis, as irmãs vinham a São Chico nas férias. 


Os anos passaram, mas algumas coisas não mudaram, tanto que uma das recordações mais fortes delas era chegar na casa e se deparar com uma mesa cheia de comida. Rosalba seguiu os costumes da mãe, sempre deixava a mesa posta e as portas abertas para receber quem passasse. A residência sempre foi um ponto de encontro da região e se manteve assim por várias décadas, até a morte de Rosalba. Com o falecimento de quem cuidava do local, a casa ficou fechada e começou a sofrer com os impactos do tempo. A vegetação tomou conta da estrutura, fortes chuvas derrubaram parte do telhado, ventos intensos causaram rachaduras e derrubaram algumas paredes. 

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Apesar de deteriorado, o casarão que sempre foi cheio de vida e alegria não podia acabar dessa forma. Pensando em resgatar e celebrar a memória da família, as irmãs decidiram revitalizar o local. As duas são engenheiras civis, então estruturam e acompanharam de pertinho as obras que rodearam por alguns anos o local. Elas não fizeram o projeto sozinhas, contaram com o apoio e financiamento do tio e filho de dona Rosinha Laércio Aviz. 


O projeto iniciou no finalzinho de 2019, mas só em 2021 ficou pronto. A princípio a ideia era que o local fosse reformado para outra família morar, mas ao longo do trabalho o restauro ganhou uma nova projeção. 

“Quando a gente começou a fazer a obra, quando começamos a fazer esse movimento, muitas pessoas vieram atrás da gente assim de com o sentimento de gratidão. O casarão foi um local de acolhimento da população local. Maroca e Calixto ajudaram muita gente e, ao longo da obra, muitos paravam e conversavam conosco sobre histórias que viveram no local. Várias histórias de mulheres grávidas que não tinham onde morar e eram acolhidas pela vó Maroca. Enfim, a gente começou a conhecer várias histórias que a gente nem imaginava que tinha acontecido e foi bem interessante ver quantas pessoas que ela já ajudou” - Marina Aviz da Costa Pereira

Quando a ideia de reformar o casarão ocorreu, elas não sabiam muito bem o que queriam fazer quando terminassem. O desejo de levantar as paredes e deixar o local como sua mãe e avó conheciam era maior. Elas até pensaram em colocar a casa para alugar quando as obras fossem concluídas, mas com a quantidade de relatos que receberam, perceberam que os planos tinham mudado. 

Começamos a reforma e  escutamos as histórias de pessoas que passavam pela casa e tinham alguma relação com ela. Percebemos que a casa tinha muito mais valor. Então a gente resolveu começar a alugar para eventos, para quem quisesse fazer algum tipo de celebração no local

A ideia da casa de eventos veio após algumas análises de mercado. As irmãs perceberam o que estava faltando na estrutura da cidade e que poderia ser suprida pelo casarão. Elas notaram que São Francisco do Sul é um município turístico e repleto de belezas naturais. Muitas pessoas recorriam a outras cidades da região para fazer uma festa ou casamento. Contudo, ali no Solar dos Pereiras tinha o que os clientes mais procuravam: uma vista esplendorosa e uma arquitetura histórica. Não demorou muito para que a casa que acolheu tantas pessoas voltasse a abrir as portas para novas memórias e festividades.

Quando começamos a mexer na casa foi um desafio bem grande, porque é muito mais fácil começar uma obra do zero do que reconstruir. Desde o início a gente quis manter todas as características da casa, mesmo não sendo uma estrutura tombada pelo IPHAN

Apesar de estar distante do raio de tombamento do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, Mariana e Helena resolveram manter a fachada, afinal, é a maior referência da casa. Contudo, fazer uma reforma em uma casa tão antiga é cheia de desafios. A casa é feita de pedras, então a dupla teve que analisar se a estrutura aguentaria toda a reforma e o conceito aberto que uma casa de eventos requer. 


O Casarão Calixto estando fora da área de proteção do órgão nacional do patrimônio permitiu que sua estrutura fosse reforçada, paredes fossem quebradas, isolamento acústico fosse instalado e outros itens que proporcionam conforto a quem está do lado de dentro e de fora do local. 


O imóvel, que durante décadas serviu de hospedagem para viajantes, acompanhou a evolução do tempo do bairro. Viu a economia local sendo desenvolvida com o comércio de secos e molhados, assistiu pessoas aprendendo a ler, escrever e pintar, presenciou nascimentos e curas. Ele que sempre esteve repleto de risadas, alegrias e pessoas viu suas portas serem fechadas com a despedida de seus proprietários. Aguentou o quanto pode as consequências do tempo e abandono, mas recebeu de portas abertas aqueles que eram seus herdeiros por direito e que trouxeram a vida de volta ao seu interior. O tradicional ponto de encontro do Paulas voltou a ser referência na localidade e constrói novas memórias em conjunto com a comunidade. 

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