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![bege-envelhecido-fundo_53876-88685_edited.jpg](https://static.wixstatic.com/media/ac1c68_2a5f5c83dfee4fcd97e45907476acf6a~mv2.jpg/v1/fill/w_798,h_532,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/ac1c68_2a5f5c83dfee4fcd97e45907476acf6a~mv2.jpg)
Quanto vale o tempo? Algo tão relativo e imaterial, como é possível calcular o seu valor? Minutos podem parecer horas, se você não tiver nada para fazer, e o contrário também é válido. Eu, por exemplo, vi coisas impossíveis de enumerar em uma parcela de tempo que é difícil de contabilizar.
Acompanhei a chegada da embarcação estrangeira que levou embora o jovem índio e vi a tristeza que assolou o cacique quando percebeu que seu garoto não voltaria. Presenciei espanhóis tentando desbravar a alta vegetação local e estava lá quando os primeiros povoados começaram a se formar.
Garanti a primeira fila para ver as construções começando a se elevar. Vi a igreja da cidade ganhando forma às custas do trabalho escravo. No mesmo local, assisti de camarote histórias de amor tendo seu final feliz, noivos sendo arrastados no altar para firmar relações forçadas, despedidas comoventes e a hipocrisia com o povo que ergueu aquelas paredes.
Estava ali quando uma maldição foi jogada na cidade, mas também observei a valorização econômica da região. Escutei de longe empreendimentos abrindo e negócios sendo fechados. O apito do trem e a buzina do navio anunciavam a prosperidade que chegava no município.
Por outro lado, vi os povos originários perdendo seu espaço e negros sendo desumanizados. Presenciei quando os açoites foram levantados e quando sangue manchou as minhas ruas. Estava lá quando famílias foram quebradas, amizades foram perdidas e amores foram dizimados. Assim como marquei presença quando pessoas foram xingadas, feridas e mortas.
![bege-envelhecido-fundo_53876-88685_edited.jpg](https://static.wixstatic.com/media/ac1c68_2a5f5c83dfee4fcd97e45907476acf6a~mv2.jpg/v1/fill/w_684,h_456,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/ac1c68_2a5f5c83dfee4fcd97e45907476acf6a~mv2.jpg)
Acompanhei nascimentos na mesma proporção que falecimentos. Já fui em velórios mais felizes do que algumas boas-vindas de bebês. Assim como acompanhei a chegada de crianças com climas mais pesados que muitos enterros. Mesmo não estando fisicamente presente, participei de muitas vidas do início ao fim.
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Quando a cidade se mobilizou para receber o então presidente Getúlio Vargas, eu estava lá. Da mesma forma que vi da varanda a poetisa Júlia Costa rascunhar outro texto. Quando a folia dominava os dias e noites de carnaval, minha presença era confirmada, assim como na Páscoa, Natal e Ano Novo. Em todos esses eventos, entrei no camarote e tive a visão principal.
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Vi quando a passagem de tempo presente nas fachadas do centro da minha cidade foi reconhecida e protegida pelo patrimônio. Na mesma proporção, vi o declínio e falta de investimento nas construções que um dia encheram os olhos dos turistas. O abandono em muitos prédios era evidente e as paredes disputavam lugar com o mato que crescia entre as aberturas.
Lá estava eu sendo o foco da luta constante dos moradores que reivindicavam mais atenção ao centro que chamam de lar e ao que eu chamo de reflexo. Vi muitos pedidos sendo ignorados e muitas solicitações esquecidas. Contudo, também vejo a retomada e a busca por revitalizar a beleza da paisagem arquitetônica que me rodeia.
![bege-envelhecido-fundo_53876-88685_edited.jpg](https://static.wixstatic.com/media/ac1c68_2a5f5c83dfee4fcd97e45907476acf6a~mv2.jpg/v1/fill/w_668,h_445,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/ac1c68_2a5f5c83dfee4fcd97e45907476acf6a~mv2.jpg)
Nunca pensei que fosse passar por isso, mas me vi sozinha na rua quando todos se abrigavam em suas casas. As vias, antes movimentadas, estavam calmas e deprimentes. Os comércios fechados e sem previsão de abertura. Os moradores, que viviam conversando nas esquinas, encontraram refúgio em seus lares e, quando se aventuravam para fora, traziam no rosto um adereço que não era máscara de carnaval. Foi um momento de incerteza que abalou não só a cidade como todo o planeta, mas que em segurança recobrou a normalidade.
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Testemunhei todos os períodos desde o princípio. Lá estava no seu surgimento, prosperidade, valorização, crise, declínio, esquecimento e retomada. E continuo acompanhando a história sendo escrita na frágil linha da vida. Afinal, sou passageira regular e dependente do lapso temporal e do que ocorre nele. As consequências da história são marcadas em minhas paredes, as memórias circulam constantemente pelos meus paralelepípedos, as lembranças são formadas em cada esquina que possuo e minha identidade está fincada no centro histórico de São Chico.